20110607



Mandarino Laçador e a Índia Beija Flor



No Brasil meridional
cento e vinte anos atrás
se erguia uma floresta
onde todos animais
plantas e seres humanos
existiam como iguais

A floresta processava
água, terra, fogo e ar
Atlântica se chamava
e isso pra demonstrar
que a borda dessa mata
bordava a borda do mar

Observe, por favor
de maneira imaginária
veja todo esplendor
das florestas legendárias
lar do povo Kaingang
a nação das gigantescas araucárias

Acomode-se no barco
feito de imaginação
desça o Paranapanema
observe a região
a lua cheia clareia
vindo em sua direção
a rara vegetação


Enquanto o barco desliza
tudo ao redor está mudo
pois aqui reina o silêncio
que gerou todos os mundos
e não é qualquer silêncio
mas o silêncio das águas
que é um silêncio profundo

Encosta e desce ligeiro
mas não sejas iludido
o silêncio que reinava
pelo som foi destruído
pois no meio da floresta
existe uma sinfonia
de centenas de milhares de gemidos

Agora mais uma vez
através do pensamento
caminhe bem pela trilha
que leva ao acampamento
onde a nação Kaingang
bebendo vinho de milho
comemora um nascimento

Silêncio, diz o Kuiã
que é um sábio curandeiro
comemorem devagar
recomponham-se ligeiro
pois na borda dessa mata
espreita o cruel guerreiro

Com esse ser orgulhoso
já não há quem dialogue
Se ele escuta nossa voz
vem trazendo em seu reboque
seus horríveis co-irmãos
do exército dos Fóg.

E ninguém aqui deseja
uma tal situação
ser atacados por Fógs
sem estar em prontidão
é o mesmo que achar a onça
mas esquecer do facão

Nessa noite faz três luas
que essa criança nasceu
fomos aqui reunidos
pelo Kuiã, que sou eu
para ouvir do Iangrê
o nome que ele escolheu

Se o Kuiã caçava a vida
Iangrê era o seu guia
era um animal selvagem
que tinha sabedoria
para prever o futuro
da criança que nascia

O Kuiã prepara um chá
no modo tradicional
no pilão a erva soca
para o banho ritual
enquanto lava a criança
pede a Iangrê um sinal

E quando canta o seu hino
de amor e proteção
ergue no ar a menina
e deseja com paixão
Que essa alma seja forte
como a pedra do pilão!

E prevendo em seu futuro
o cativeiro e a dor
o Kuiã lhe da um nome
que desconhece o pavor
se chamará Kokuí
que quer dizer beija flor

Uma ave como essa
não aceita escravidão
porque caminha no vento
voa em qualquer direção
esse ser da natureza
tem na sua miudeza
a mais fina proteção

Foi assim que Kokuí
recebeu seu nome novo
para fugir da opressão
que castigava o seu povo
ela era um beija flor
recém-saído do ovo










Fecha o olho agora e monta
no cavalo da ilusão
deixe que ele te conduza
pela vasta escuridão
até a fazenda nova
onde a família de Fógs
reparte uma refeição.

Trabalhe! Diz o patrão
que é um rico fazendeiro
aquele que não trabalha
é ladrão e trapaceiro
és o meu filho mais velho
mas por golpe do destino
não podes ser meu herdeiro.

O menino Mandarino
era filho do patrão
nasceu sem nenhum defeito
mas com uma condição
que o forçava a viver
evitando insolação

Mandarino não podia
jamais sair no calor
se ele teimava e fugia
voltava desesperado
queimado e sentindo dor
porque o garoto fóguinho
nasceu sem nenhuma cor

A fazenda quem governa
é o patrão que sou eu
e é debaixo do sol
que ele defende o que é seu
pra colher o que plantou
e vender o que colheu

Me desculpe meu mais velho
seria muito arriscado
confiar as nossas terras
a um ser tão limitado
quando os Guayanãs do mato
estão por todos os lados

O patrão ignorava
que um sujeito sem cor
pode dar o rendimento
de qualquer trabalhador
quando a limitação
não é o limitador

Mandarino sai da casa
como um risco de facão
espalhando pelos olhos
faíscas de agressão
monte em seu negro cavalo
e vai caçar solidão

Quando passa galopando
quem o vê se assusta e pasma
seus longos cabelos brancos
vermelhos olhos em brasa
refletem a luz da lua
e ele parece um fantasma



O nobre observador
dessa história marcial
pode apear do cavalo
atravesse o cafezal
encontre dentro da mata
a Araucária imortal

A Araucária imortal
manda sua vibração
para todas araucárias
dessa vasta região
e elas geram um fruto
que alimenta muita gente
porque se transforma em pão

E essas próprias sementes
da Araucária original
aquela que fertiliza
todo vasto pinheiral
possuem dentro de si
um poder especial

Segure forte um pinhão
e veja como se sente
o seu peso corporal
se iguala ao da semente
e cresce a sua coragem
como aquela do valente

Dá um pulo e vá subindo
pisa no tronco e caminha
procure uma posição
como a ave que se aninha
observe agora embaixo
doze anos de passaram
Kokuí já é mocinha

Tudo aquilo que se ensina
de maneira natural
foi isso que ela aprendeu
na escola florestal
onde estudar é seguir
o movimento tribal

Andando no pinheiral
o pinhão que coletava
ia guardando na cesta
que ela mesma trançava
enquanto seguia junto
a um grupo que caçava

Assim como toda jovem
ela fica distraída
esquece por um minuto
sua busca por comida
enquanto brinca no limpo
o grupo entra na mata
Kokuí foi esquecida

Sem ao menos perceber
sua frágil posição
a menina ainda brinca
pousa o cesto de pinhão
em baixo da Araucária
que com seus galhos curvados
parece pedir perdão

Porque de trás de uma pedra
há um nobre sorrateiro
que espia Kokuí
com grandes olhos vermelhos
um Fóg sequestrador
o filho do fazendeiro

Também foram doze anos
desde sua adolescência
Mandarino se tornou
caçador por excelência
bugreiro como se chama
o que caça inocência

Se a clara luz do sol
lhe gerava desconforto
ele fez do dia noite
transformou o reto em torto
de forma que lhe alegrava
ver um Kaingang morto

Mas não era seu intento
ver Kokuí baleada
o seu laço ele segura
como se fosse uma espada
pois ela a quer para si
mesmo que seja forçada

A Araucária imortal
lhe dará a audição
de conseguir escutar
o bater do coração
de um beija flor distraído
alegre e descontraído
na beirada do tufão

Poderá ouvir também
se tiver boa vontade
o motor descalibrado
o coração com maldade
daquele que atocaiado
se escondeu da verdade

Kokuí percebe o vulto
que corre girando o laço
vai na outra direção
mas não deu ainda um passo
e a corda do laçador
já lhe deu o seu abraço

Quando a lua encobre o sol
no eclipse anelar
o pequeno prende o grande
de forma espetacular
e quem olha aqui da terra
vê a flutuar no ar
um bonito anel solar

Mas essa força da lua
é de curta duração
só basta a terra manter
sua veloz rotação
e o sol escapará
lentamente da prisão

Bem assim da mesma forma,
prezado amigo leitor,
Kokuí vai amarrada
pelo seu sequestrador
como a lua cobre o sol
sem saber que é ilusória
a vitória do opressor

Ela foi aprisionada
numa casa de madeira
porque a sua atitude
era de grande guerreira
que usa dentes e unhas
como arma derradeira

Pra conseguir sua fuga
procura o plano perfeito
conhece o seu inimigo
faz o que tem de ser feito
pois quando foge pra mata
leva uma filha no braço
e outra filha no peito

E são essas duas filhas
que irão representar
o bonito anel de luz
que vês flutuar no ar
quando a lua encobre o sol
no eclipse anelar

FIM




Autora
Carlota Papuda
Consultora de Antropologia Kaingang
Juracilda Veiga
Consultor de Linguística Jê
Wilmar D'Angelis
Diagramação
Ana Ferraz